O meu Lotus 7 nas 500 Milhas ACP

| Revista ACP

Como percorri 650 km praticamente colado ao chão e cheguei ao pódio.

Nuno-Pena-900

O meu Lotus 7 (Seven) é um cubículo apertado sem teto. Tem uma fechadura do lado de dentro. Damos meia volta à chave e o mundo liberta-se em velocidade. E vemos o filme de tudo o que nos possa ter passado despercebido até então. A descrição pode parecer estranha e será. Eu explico. O auge do 7 coincide com o início de um movimento artístico de 1970, também britânico, conhecido por poesia marciana, que procurava, com graça, retratar coisas, para nós comuns ou banais - um carro, um relógio ou um livro -, como um marciano o faria. De um modo não familiar, dir-se-ia. O meu Lotus 7 sempre foi o mesmo. Se bem que agora o saiba maior na sua dimensão, a verdade é que sempre viajei nele. Caberá sempre na Match Box original que recebi nos anos 70. Pelo menos assim é visto de Marte, de onde gosto de o observar.

O 7 voa. É frágil, lindo e sensível. Ah!... E tem uma voz que não podia ser mais sexy. Certamente por isso, quando o meu amigo Eduardo (Carpinteiro Albino) me convidou para fazer as 500 milhas, nem hesitei em levá-lo. Só mais tarde – quando me ligaram do ACP porque queriam entrevistar os insanos que haviam inscrito um Lotus 7 na prova - me dei conta daquilo em que nos tinha metido. Entre prova e retorno a casa faríamos praticamente 900 km encaixados no cubículo voador. E se chovesse? E as malas? E os abastecimentos? Como e onde ligar aparelhos? Mas estava decidido. Fizemos duas breves sessões de treino que nos anteciparam ao de leve as exigências da prova – para nós e para o 7 - e, precisamente às 6:52 h do dia 11 de Setembro 2021, partimos de Cascais.

Primeiro em direção à Arrábida. Sobre o Tejo, a Ponte movia-se elegante como sempre e o Paulo Maria, da sua moto, tirou a mais fantástica das fotografias de um 7. Da Serra da Arrábida – cuja beleza nem me atrevo a descrever por respeito próprio - seguimos até Coruche e daí para a mítica EN 2. Almoçámos junto ao Tejo em Abrantes, onde chegámos já a precisar de alongamentos e muita água. A pausa deu para recuperar e, sobretudo, também para o Eduardo preparar os troços da tarde que aí vinha, alertando-me para as exigências do road book. Por essa altura vimos que estávamos bem classificados e resolvemos não ver mais nada para não nos deslumbrarmos com outra coisa que não fosse o 7 e a paisagem. De Abrantes seguimos para Arganil, depois de Sintra, talvez o local mais mágico do Rali de Portugal, e daí para o Caramulo.

Ao fim da tarde, acusando já cansaço e mesmo algumas dores – que a beleza austera do 7 tem também o seu lado lunar – procurámos recentrar-nos para que a distância já percorrida não nos tolhesse a concentração. O Eduardo e eu estamos habituados a “trabalhar” os dois e nem o facto de os instrumentos terem pifado nos fez perder a moral. Perguntei apenas os segundos para a partida do troço, respirei fundo, e acelerei até apanhar a média por intuição (ao fim de horas a ouvir o 7, parece que ele nos avisa quando estamos lá). Entretanto o Eduardo colocou tudo a funcionar novamente com a serenidade do costume.

Os troços do Caramulo e a descida para Águeda, antes de chegar a Aveiro, foram já percorridos de noite, o que foi exigente. O carro parecia então desconjuntar-se. Foi meio assustador pensar que podíamos ficar pelo caminho. Mas afinal, era apenas o seu modo mecânico de se solidarizar connosco e lá chegámos a Aveiro os três. O Eduardo e eu fomos diretos para o bar beber um gin enquanto o 7 lambia as feridas e descansava para voltar a casa no dia seguinte. Um marciano ouviu-o gabar-se da sua classificação junto de outros carros da prova.

Nuno Pena, sócio ACP Clássicos 

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